Todos os verdadeiros aficionados defendem que o “Rei” da festa é o Toiro. Foi com base nessa premissa que nos surgiu a ideia de escrever sobre o toiro bravo, sobre a história dos diferentes encastes, sobre as diferenças que existem entre eles e sobre a importância do processo de seleção de várias gerações de ganaderos que marcaram indubitavelmente a tauromaquia.
Apesar de existirem relatos de espectáculos taurinosdesde o século XV, o desenvolvimento de ganadarias organizadas e destinadas a criar animais para a lide terá tido o seu início no século XVIII. Diversas fontes consideram que o toiro de lide actual teve origem em diferentes Castas Fundacionais, incluindo neste grupo a Casta Jijona, Navarra, Gallardo, Cabrera, Vazqueña e Vistahermosa, sendo que algumas viram a sua influência diminuir com o decorrer dos séculos, fruto das características dos toiros e da evolução da tauromaquia.
É frequente falarmos também de Encastes, sendo que podemos definir como um conjunto de animais, de uma ou de várias ganadarias, que compartem a mesma origem genética e que possuem características zootécnicas e comportamentais relativamente comuns. Os diferentes encastes resultaram tanto da seleção direta das diferentes Castas Fundacionais, como por exemplo a Casta Vistahermosa, que originou encastes tão diferentes como Murube-Urquijo, Contreras, Saltillo, Santa Coloma ou Urcola; como da mistura entre as diversas Castas, como por exemplo o encaste Vega-Villar, que resultou do cruzamento de animais Vazqueños com Santa Coloma (Vistahermosa).
Iniciamos esta digressão pelos encastes mais emblemáticos da tauromaquia com a lendária ganadaria Miura, único representante na actualidade da Casta Cabrera.
A criação desta Casta Fundacional está atribuída a Luis Antonio Cabrera, no ano de 1740. Contudo, foi apenas 40 anos mais tarde, já sobre o controlo do seu neto, José Rafael Cabrera Ponce de Leon y Luna, que atingiu a fama e destaque no contexto taurino de então, conseguindo alcançar um tipo de toiro que perdura até aos dias de hoje. Diversos ganaderos da época procuraram reses desta Casta para iniciar os seus projectos ou para melhorar o existente nas suas ganadarias. Dentro desse conjunto está Vicente José Vasquez, ganadero de excepçãoe que foi primeiro a implementar o processo de tenta. Aquando do falecimento de Vicente e da sua esposa, a ganadaria chega a Jeronima Nuñez de Prado, que posteriormente vende parte da vacada a Juan Miura Rodríguez, no ano de 1852.
A ganadaria de Miura representa, tal como referido por diversos autores ao longo tempo, “a eterna dualidade que define a tauromaquia: o contraste entre a glória e o drama”. Juan Miura Rodríguez foi o responsável pela suacriação, adquirindo em 1842 vacas a Gil Herrera, provenientes de Casta Gallardo, seguido de outro lote da mesma procedência, adquirido a José Luis Alvareda. Posteriormente entra em cena a Casta Cabrera, em 1852,com a aquisição feita a Jeronima Nuñez de Prado e também a José Rafael Cabrera y Angulo. Em 1854 juntam-se sementais de Jose Arias de Saavedra (Casta Vistahermosa). Embora seja clara a mistura entre as diversas Castas fundacionais, o sangue Cabrera torna-se claramente o dominante na ganadaria. Após a morte de Juan Miura, seguiu-se Antonio Miura Fernández, que tomou as rédeas da ganadaria até ao ano de 1893. Com o falecimento de Antonio, coube ao seu irmão mais novo, Eduardo Miura Fernández, assumir a responsabilidade da ganadaria. Neste período o nome de Miura continuou a ser presença assídua nas principais feiras e a referência da cabaña brava. É também neste período que a história dos Miura encontra o seu lado trágico, com as primeirascolhidas fatais, primeiro de José Rodriguez “Pepete”, pelas hastes de Jocinero, e depois do bandarilheiro Mariano Canet, mortalmente colhido por Chocero. Os toiros caracterizavam-se pelo seu poder físico, agilidade, dureza e facilidade em desenvolver sentido durante a lide, dificultando a tarefa dos toureiros, mas com um grande impacto no público. Seguiram-se Antonio e Jose Miura Hontoria, que tentaram aprimorar os critérios de seleção, procurando adicionar mais nobreza, humilhação e duração aos seus toiros, acabando por eliminar cerca de 50% do efectivo, sem comprometer, no entanto, a dureza no comportamento, a dificuldade para os toureiros e o espectáculo para o público. Mais tarde surge ao leme da ganadaria Eduardo Miura Fernandez, que após o seu casamento com Maruja Fernandez, translada a ganadaria para a herdade de Zahariche, exploração mítica que se mantém ligada ao nome Miura até aos nossos dias. Mais tarde, em 1966, a ganadaria passa para Eduardo e Antonio Miura Martinez, figuras bem conhecidas de todos os aficionados e que ainda hoje se mantêm como representantes da divisa.
Em 1908 acontece um dos mais curiosos episódios ligados à ganadaria, conhecido como “El Pleito de los Miuras”. Bombita e Machaquito, duas das maiores figuras da época, juntamente com outros 10 toureiros, publicaram um manifesto, exigindo a todas as empresas que dobrassem os seus honorários sempre que se anunciassem com os toiros da lendária ganadaria, fruto do perigo das reses e das suas imponentes características morfológicas.
A tragédia surge inegavelmente ligada ao nome de Miura, já referida com Jocinero e Chocero, mas muitos outros que ajudaram a forjar a lenda, como Perdigón, Receptor, Agujeto e Islero, talvez o mais famoso dos toiros de Miura, que na praça de toiros de Linares, no dia 27 de agosto de 1947, colheu mortalmente a Manuel Rodríguez “Manolete”. Muitos outros, por outro lado, ficaram na memória pelo seu comportamento, recolhendo em diversas ocasiões os prémios de melhores toiros e de corridas mais completas em diversas praças, como por exemplo Galleguito, Gallareto, Fortuna ou Pépon (estes três últimos eleitos como melhor toiro da temporada na Feira de San Isidro, em Madrid). Outro dado curioso é que foram precisos 177 anos para que se indultasse o primeiro exemplar desta ganadaria, de seu nome “Tahonero”, lidado na praça de toiros de Utrera, no dia 22 de junho de 2019, por Manuel Escribano.
Morfologicamente, o toiro de Miura é inconfundível. São exemplares longilíneos, grandes, com córnea bastante desenvolvida, de grande altura, com um pescoço largo, mas de murrilho não muito proeminente, com o ventre recolhido e com as extremidades compridas e largas, designando-se como zancudos. Não são toiros que pareçam tão rematados de carnes como noutros encastes, mas que facilmente atingem os 600kgs, tendo em conta o seu enorme esqueleto. Também como curiosidade, o desenvolvimento das hastes costuma ser algo tardioquando comparado com outros encastes, sendo frequentemente cornigordos (com a base dos cornos bastante grossas e com os pitons pouco afilados). A nível de pelagens a ganadaria exibe uma enorme variedade, passando pelos negros, cárdenos (nas suas diferentes tonalidades), castanhos ou colorados, surgindo também os sardos (pelagem composta por pelos negros, castanhos e brancos), salineros e, ocasionalmente, os berrendos. É bastante comum surgirem toiros luceros, bragados, calceteros ou botineros.
O comportamento destes toiros é também bastante peculiar. No campo são normalmente animais bastante agressivos e que exigem um maneio bastante cuidado. Empraça costumam sair distraídos, tardando em fixar-se nos capotes e sem se empregarem verdadeiramente no início da lide. No tércio de varas são bastante variáveis, existindo os bravos, que se empregam e crescem perante o castigo, mas também os mansos, que tendem a dificultar imenso a realização da sorte. No tércio de muleta são descritos, pelos seus actuais proprietários, como animais aos quais se devem fazer as coisas muito bem feitas, uma vez que tendem a aprender muito depressa e a aperceber-se das incertezas ou dúvidas demonstradas pelo toureiro. São, também por isso, toiros de faenas curtas e intensas, acrescentando um grau de dificuldade suplementar pela agilidade e rapidez nos movimentos, apesar da sua morfologia. Com base nesta descrição é fácil perceber porque Miura é qualificada como uma ganadaria “torista”.
Em jeito de conclusão, é inegável que a divisa de Zahariche é histórica e permanece como uma referência na actualidade, procurou sempre adaptar-se às exigências progressivas do toureio, sem, no entanto, pôr em causa as características base e o tipo de toiro que há 5 gerações – e há 180 anos - permanece ligado ao nome de uma só família, a de Miura.
Por: Diogo Felício
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Bibliografia:
1) El Toro Bravo – Ganaderías Míticas, 2ª Edicion, de José Luis Prieto Garrido
2) http://www.cetnotorolidia.es/opencms_wf/opencms/toro_de_lidia/castas_y_encastes/index.html
3) https://www.las-ventas.com/ganaderia/179
4) https://taurodromo.com/phistoria/2013-maio/7612-castas-que-deram-origem-ao-atual-toiro-de-lide-cap-ii
5) https://sevilla.abc.es/provincia/sevi-ganaderia-toros-miura-174-anos-historia-largo-siete-generaciones-201602252340_noticia.html
6) https://www.guarismodelocho.com/2021/03/el-pleito-de-los-miuras.html
7) https://sevilla.abc.es/cultura/toros/sevi-tahonero-primer-miura-indultado-recupera-campo-201906260740_noticia.html?ref=https%3A%2F%2Fwww.google.com%2F
Imagens:
Jose Joaquin Diago
Mundotoro
Terra de Bous - Paco Moya
Miura (página oficial no Twitter)
Raul Doblado
DR




