Foi onde?
Como? Porquê? Ajuda-me a perceber as circunstâncias e entornos disto a que se
chama vida. Às vezes não entendo. Não consigo, não posso.
Faz em breve
um ano, estava sentado, perdido entre cigarro e cigarro, procurando angariar
força para poder dar eco a esta carta. Não consegui. Esfumaram-se todos os
fluxos que tinha até aí… Acreditei que o Victor me perdoava. Disse-se tanto, escreveu-se
tanto. Mas há sempre algo a dizer. Há sempre. Disso, não me perdoo.
Somos tão
pequenos nos momentos inglórios. Que impotência. É como se estivéssemos no início
da adolescência, em que buscamos a liberdade e a autonomia, mas a sensação de
falta de chão e conforto remetem-nos para o assombro, para as dúvidas que
multiplicam-se por segundo, e as respostas que fogem em milésimas do mesmo.
Onde foi que
te falhámos? Não sei quem poderá dar-me resposta…
Que honra
foi, Iván. Choro-te e agradeço-te por tudo.
Épica e
lírica. Como deve viver um toureiro. A tua lição está a par de tantos… Não estivéssemos
na temporada dos 70 anos após Manolete.
Pepe Hillo, Gallito, Litri, José
Falcão, Paquirri, Yiyo, Renatto Mota, El Pana, Victor Barrio… tu, Iván.
Entre
cigarro e cigarro, pauso, reflito. Que destino mais cruel, mas honroso e
importante podiam ter tido… Porque o entendimento lógico e racional jamais terá
a proporção do sentimento. Mas que é sentir? Que é algo lógico e racional?
Continuo na fase de incertezas, a (re)descobrir o que é o quê, a tentar perceber
o que faz ou não sentido. A única dúvida que não me assola é a tua grandeza, a
tua verdade e transparência. Por isso sou apaixonado por ti. Tantas vezes
doente, louco. Porque não me assolam essas questões? Sentimento, sentir… Isso.
Acendo só
mais um cigarro. Estou sozinho e falta-me o chão. Penso em tanta coisa,
enquanto tenho a mente despejada e sem conteúdo… Orgulho ou raiva, glória ou
revolta. Acentua-se uma bipolaridade invulgar e não encontro diagnóstico para
isto. É difícil.
Um palco
onde se morre de verdade… A cabeça não me ajuda, mas creio ter ouvido esta
frase da boca do Dr. Joaquim Grave. E quem cria a bravura? Que se sente num
momento destes? Que se pode interrogar? Onde foi que te falhámos…?
Um palco
onde se morre de verdade… Nós dois, eu e tu, num tentadero, numa vacada, em
Madrid, na México ou Nîmes. Os nossos caminhos não se cruzam por acaso. Eu dou-te
vida, tu mantens a chama que suporta o que te dou. E ambos nos complementamos.
Bailámos tantas tarde. Sonhámos óperas, saraus e sinfonias em noites de
arrebato. Mas também recriámos tragédia. Suplantámos adversidades, ora pelo teu
temperamento, ora pelo meu desgaste ou incompreensão perante ti. Quão difícil é
entender-te. Os de fora, (não queria falar neles) jamais entenderão… Mas nós
mantemos a paixão por ti em qualquer contexto, de qualquer forma, da maneira
que for. Vivemos para ti, por ti. Dás-nos tudo, e tiras-nos tudo. Mas que outra
forma existirá para amar exacerbadamente um ser como tu? Não há. Porque a nossa
paixão é pura, e a tua entrega é honesta e vertical. Contigo explanamos o que
de melhor levamos dentro, e por ti damos a vida a qualquer instância.
Um palco
onde se morre de verdade… Onde não há guião, não há previsões. Um palco onde se
glorificam os valentes, que dão a cara e perdem o norte pela causa. Perdem mais
que o norte… Mas tu Iván, tu, o Manolete, o Yiyo, o José Falcão, o Pana, o
Victor Barrío (…), não perderam nada. Conquistaram a morte em vida, venceram o
medo de frente, olhos nos olhos. Partiram como eleitos… Mas em que foi que te
falhámos? O que é que faz sentido?!
Prometo a
mim mesmo que em breve deixarei de fumar, mas perco o rumo ao escrito e careço
de algo. Relaxo q.b. e penso em tomar algo. Não tenho paladar para isso. Falho
a mim mesmo.
E falho e
volto a falhar, por errar tanto e tanto e valorizar tão pouco em vida aqueles
que merecem ser relembrados todos os dias, e não só no da partida. Porque
reflito e reflito ainda mais, e faço as pazes com quem me tirou o abrigo, o chão
e o rumo. Porque não havia outra forma sem ser esta. Porque acredito que neste
sentido, uma perda pode ser convertida em glória, e unânime a todos os que
sentem. Porque não faz sentido chorar mais por aqueles que alcançaram tanto, e
nos deram o dobro.
No fundo, eu queria partir assim, a fazer o que mais amo,
com a certeza que a felicidade e completo
prazer irradiavam o meu ser. Isto é o
pleno da vida. Eu queria ser como tu Iván, como o Manolete, como o Yiyo e como
o Victor. Mas eu sou só um cobarde, que escrevo cómodo atrás de um computador
enquanto me afogo em nicotina para tentar aliviar. Mas aliviar o que? Que faço
eu comparado com a grandeza da história que escreveram e do legado que
deixaram? Eu que ouso e sonho, que me meto à frente de uma vaca e me seca a
boca, as pernas tremem e ficam incrivelmente estáveis, que ao passar tamanhos
instantes quase me falta forçar para segurar os trastos, mas inesperadamente
consigo, tenho força para seguir. E quando sinto a investida passar tão perto…
O que há que pague isto? Haverá algo que me preencha mais que isto? Imagino os sorrisos
esboçados, por vós que desfrutaram mas mais fizeram desfrutar. Quando se está
em frente ao ser que amamos, não se pede muito. Quer-se ser feliz. Sorrir sem
motivo e chorar de dor boa por saber que demos tudo, e em todos os momentos te
encarámos de peito aberto e com a disposição para dar a vida por ti. E os
momentos mais duros, mas revestidos da maior glória, acabam por chegar.
Apetece-me
escrever mais, incluir palavrões e dizer coisas sem nexo, estou revoltado, mas
consciencializado. Acendo a tv e está a dar a tua encerrona de 2014 em
Guadalajara. Ao mesmo tempo, a playlist que ouço no youtube passa o ‘Venecia
sin ti’ dos Siempre Así, e não aguento. Tirei o som à tv, e aparece Pana na
bancada, a assistir à corrida… Estou roto. Arrepio-me. Olho para a tv, para ti, a bordar o toureio pela esquerda, e não acredito. Não acredito, não é verdade. Que
grande, Iván. Que grande és, minha festa.
Se algum dia
contestarem estas palavras, só peço que Deus vos dê a oportunidade de algum dia
puderem sentir algo que vos rebente de felicidade, que consiga destruir a vossa
alegria, e que vos enlouqueça sem saberem o porquê de desfrutar tanto e tão
ingenuamente de algo que é mais que um sentimento. Aí, saberão o que é pureza, o
que é sentir sem pensar, o que é querer de forma exacerbada e sofrer tanto,
tanto, tanto, mas emocionar-se o dobro logo de seguida com o mais singelo
detalhe que apareça.
Um palco
onde se morre de verdade… e olho para o maço e não vejo nenhum cigarro. Escrevi
tanto que me doem os dedos. A alma já não me dói tanto. Não preciso de refletir
mais. Que glória seja feita aos toureiros. Que perpetuem na memória de todos os
que tem sensibilidade para sentir, viver e morrer por isto.
Por ti,
Victor (e perdoa-me o atraso, e perdoa esta gente por não te ter dado o mérito
que tinhas). Por ti, Pana. Por ti, Renatto. Por ti, Manolete. E por ti… Iván.
Perdoem-me a incapacidade de puder sequer pensar atingir a glória que
atingiram.
Um palco
onde se morre de verdade…
Pedro Guerreiro