Corrida Mista em Vila Franca: “Tás contente ou ainda não tás?!”
Existem corridas que é impossível
uma pessoa aborrecer-se com elas e passar um bocadinho pelas brasas…não pelo
que se passe na arena mas porque alguém ao nosso lado assim não o permite.
Naquela que foi a Corrida Mista
da Feira de Outubro em Vila Franca, a realizar-se quase com uma semana de
atraso, pouco foi o público presente mas houve um assistente que valeu por uma
praça cheia…toda a corrida.
O sr. João assume-se aficionado
desde sempre, entendido como poucos, dizia ele. Já reformado, faz uns biscates
na apanha e venda de ‘percebes’ na Ericeira e às vezes faz de cicerone aos
turistas. Era o caso. Pegou num pequeno grupo de russos e levou-os aos toiros a
Vila Franca. A seguir iam aos fados a Lisboa. E depois se ainda houvesse
vontade, metia-os no ‘Ouriço’ na Ericeira. Mas agora havia que render os
cinquenta euros da barreira… E apesar de gostar de todos, gritou a quem quis
ouvir (praticamente à praça inteira) que tinha ido ali para ver um ‘menino’, o
António João Ferreira, porque afinal toureio a pé, é o que mais gosta.
Seria uma oportunidade de ouro
que a RTP pensasse integrá-lo no naipe de comentadores das corridas
televisionadas, é que ainda que a sua voz se fizesse omnipresente em cada
minuto da corrida e por vezes até de forma molesta, houve alguma verdade nas
suas apreciações.
Sobre os toiros deixou claro, inclusive
ao ganadero a quem fez questão de ir cumprimentar perto do fim da corrida, que
foram “toiros altamente, puros, cheios de
força”. E foi quase isso… O curro da ganadaria Murteira Grave foi cumpridor
em apresentação, bonitos, rematados, homogéneos à vista. De comportamento, transmitiram
no geral, alguns encastados, outros mansos com arreões, e depois houve o n.
106, com trapío, um bom toiro, nobre, de investida regular e codiciosa, que
mereceu honra de volta à praça. Uma noite de toiros!
Aos cavaleiros, lá foi dando
dicas: “vai-te a ele”, “bem, bem a campinar”, “cuidado com esse”, “isto é que é o nosso toureio!”. Inclusive levava consigo recados e
cumprimentos da família para os artistas.
E António Telles deu-lhe sempre
ouvidos. Frente ao primeiro, com 460 kg, um toiro que raspou várias vezes, a
investir aos arreões, António teve uma actuação regular onde ainda foram
consentidos alguns toques nas montadas. Dentro do conceito clássico a que nos
habituou, de sortes frontais, o cavaleiro lá foi cumprindo com a ferragem sem
que no entanto a actuação rompesse. No que foi quarto da ordem, o tal n. 104,
de nome “Cantaor” e com 540 kg, muito havia para triunfo grande. Nobreza, fijeza, transmissão, codícia e bravura…
Mas nem sempre António porfiou por esse caminho, ao concretizar por entre a
ferragem, algumas passagens em falso que retiraram à lide algum brilhantismo,
faltando-lhe isso para ser completa. E para além da eficácia da brega a que o
toiro sempre correspondeu com alegria, ficam-nos de verdade os dois últimos
curtos, indo à cara do oponente e cravados de alto a baixo. No final, teve o
toiro merecida volta antes de recolher aos curros, onde depois seguiria na
camioneta rumo ao concelho de Mourão, pois pelo bom que foi teve direito a regressar
ao campo. E antes que os restos do furacão ‘Joaquín’ dessem sinais de vida em
Vila Franca (o que veio a acontecer no último toiro da noite com as primeiras
gotas de chuva a caírem), outro ‘Joaquín’ deu volta à arena, o ganadero.
Manuel Telles Bastos teve como
primeiro do seu lote um toiro com 460 kg, que tinha pata, perseguia com raça as
montadas e com o qual o cavaleiro nem sempre andou certeiro nos compridos e por
vezes aliviado nos curtos. Já no que foi seu segundo, um toiro com 480 kg,
viveu-se um dos momentos de maior emoção da noite quando lhe cravou um primeiro
comprido em sorte gaiola, digno de registo e de repetição (se acaso pudéssemos fazer
‘rewind’ como nos comandos da
televisão) a que se seguiu uma codiciosa e vibrante perseguição, que estava a
entusiasmar as bancadas até que, nos cortaram a alegria os bandarilheiros. Nos
curtos, Manuel andou sempre com boas intenções, bem na brega e na classe que carrega, com o toiro a ir a menos com o
decorrer da lide e a faltar um pouco nas reuniões.
“Estes é que vão pagá-las, o toiro ainda está cheio de força!”… E
raramente o sr. João se enganou. Os de Murteira Grave foram duros nas pegas mas
encontraram valentes pela frente.
Pelos Amadores de Santarém duas
grandes pegas de registo. Primeiro por obra de Lourenço Ribeiro, que à primeira
não se fechou bem com o toiro a metê-lo logo no chão. À segunda sofreu violento
derrote e também não consumou, concretizando à terceira uma boa pega com grande
ajuda de Nelson Ramalho. Já Luís Sepúlveda esteve enorme, concretizando à
primeira uma pega rija.
Para os Amadores de Vila Franca
foi mais difícil a concretização da primeira pega do seu turno. Gonçalo David
viu o toiro baixar-lhe sempre a cara na reunião, sendo as mesmas ineficazes a
que se juntaram os violentos derrotes do toiro, acabando o jovem forcado a ser
dobrado por David Moreira que só no seu terceiro intento, com ajudas
carregadíssimas, e depois dos avisos, conseguiu consumar. Francisco Faria
também sofreu forte derrote no primeiro intento mas ao segundo aguentou com
decisão e consumou, sendo também eficaz para a concretização o primeiro ajuda.
Durante as lides equestres, o sr.
João foi também homem exigente, e cada vez que os peões de brega saltavam à
arena – o que diga-se de passagem se viu em demasia – vinha o aviso: “Sai daí rapaz que o toiro é para o cavaleiro
não é para capinhas! Para tourear a pé está aí o menino!”.
E o ‘menino’ mereceu todos os
elogios por parte dele.
António João Ferreira é daqueles
casos a quem na Festa dos Toiros em Portugal, fazem parecer ser um ‘favor’
metê-lo a tourear. E como ele, outro par deles por aí… É que isto de se ser
matador de toiros no nosso país é quase secundário, terciário ou até ‘injustificado’.
Mas o toureiro, depois de já este ano lhe terem feito ‘o favor’ de o incluírem nas
Caldas da Rainha onde triunfou, mostrou em Vila Franca – terra onde se fez
toureiro – que favor faz ele aos aficionados que gostam desta vertente do
toureio. Valor, ganas e boas maneiras toureiras, foi o que trouxemos dele desta
noite na Palha Blanco. Primeiro, frente a um toiro com 450 kg, brusco nas
passagens pela flanela e curto de investida e onde foram conquistados bons
passes que sacaram os ‘olés’ das bancadas, ‘Tójó’ andou com ‘poderío’ e agradou
principalmente pela esquerda. No que fechou corrida, um perigoso toiro que se
virava depressa a cada investida, e com 455 kg, o toureiro voltou a evidenciar o
seu valor perante a rês mais complicada, impondo o seu toureio de boas
maneiras, e onde se repetiram bons passes ainda que resultasse uma actuação de
menos ligação, e para a qual, a ‘aguardada’ chuva também contribuiu para ‘espantar’
algum público e atenção, inclusive dos fotógrafos mais entretidos nas ‘bancadas’
do que na arena. No entanto, poderia o matador português ter escutado música
pela raça com que se dispôs e protagonizou a faena. Mas o lenço, tal como as
empresas que contratam, pendem sempre mais facilmente para outro lado…
Salientar ainda a boa prestação
dos bandarilheiros ao serviço de António João Ferreira, Cláudio Miguel, Joaquim
Oliveira e João Ferreira (irmão do toureiro), eficazes, valentes e de fazer
inveja a muitos espanhóis que pegam nos ‘palos’
quase todos os dias da temporada… Os três foram sempre impelidos a saúdar de
montera na mão.
Ao intervalo foi ainda prestada
singela homenagem ao maestro Mário Coelho pelos seus 60 anos de toureio e aos
Amadores de Santarém pelo centenário. Dirigiu a corrida, sem as ‘pressões’ que
o seu antecessor sofreu na passada terça-feira, o sr. Pedro Reinhardt.
Quanto ao sr. João, quando após a
lide do quarto toiro o cavaleiro António Telles ao dar a volta lhe perguntou “Tás contente ou ainda não tás?!”, ele atirou-lhe o pullover já ‘corneado’
pelas traças, bateu palmas e sorriu… Estava contente e ficou contente até ao
fim.
E aos que lhe apontavam a tagarelice,
respondeu: “Mas eu só bebi água!!!”.